domingo, 7 de setembro de 2014

Trata-o como um pagão e um publicano

1. Em 1947, o beduíno Muhammed ed-Dib, da tribo dos pastores beduínos Taamreh, descobriu nas grutas situadas junto do Mar Morto os célebres manuscritos da comunidade judaica de Qumran, que ali tinha vivido entre os séculos II a. C. e I d. C. A partir do seu conteúdo, um desses manuscritos acabou por receber o título de Regra da Comunidadeou Manual de Disciplina. Tratava-se de uma espécie de «regra monástica», e destinava-se a orientar a vida interna daquela comunidade, contendo também uma série de sanções com que eram penalizados os membros transgressores.
 2. Um dos Capítulos desta Regra é dedicado à correcção fraterna, e diz assim: «Corrijam-se mutuamente com verdade, humildade e bondade. Ninguém fale ao seu irmão com ira, resmungando e com maldade, mas advirta-o no mesmo dia em que comete a falta, para não carregar ele mesmo com a culpa. Ninguém advirta o seu próximo diante de todos, se primeiro não o fez perante algumas testemunhas» (V,24-26; VI,1).

 3. Convenhamos que se trata de medidas de grande elevação, dignas de serem ainda hoje tidas em consideração. Esta viagem a Khirbet Qumran e à Regra de vida da comunidade judaica que aí viveu, vem a propósito do Evangelho deste Domingo XXIII do Tempo Comum, em que nos é dada a graça de escutar um bocadinho do chamado Discurso Eclesial de Mateus, que ocupa todo o seu Capítulo 18. Hoje ouviremos apenas Mateus 18,15-20. No próximo Domingo, ouviremos a parte que resta desse Capítulo, exactamente Mateus 18,21-35.

 4. Tendo em conta o teor da Regra da Comunidade de Qumran e o teor do Discurso Eclesial de Mateus (Mateus 18), tem sido este Discurso muitas vezes visto A Regra da Comunidade Cristã. No bocadinho que hoje nos cabe ouvir, aí está, à semelhança de Qumran, a prática da correcção fraterna ou promoção fraterna, a levar por diante de forma gradativa e sempre com o perdão no coração e no horizonte. Primeiro, tu a tu, a quatro olhos. Depois, com o recurso a testemunhas. Finalmente, na assembleia.

 5. Subjaz ao itinerário proposto, que tem de ser sempre o amor fraterno a mover esta importante prática eclesial, e não aquele subtil sentimento que tantas vezes se apodera de nós, levando-nos a pensar que somos melhores ou superiores ao nosso irmão que erra. Contra este pretensiosismo, lá está a clave de abertura deste Discurso Eclesial, com os discípulos de Jesus – connosco, portanto – a entreterem-se com a questão inútil de quem é o maior (Mateus 18,1), e com a paradigmática resposta de Jesus, chamando uma criança e dando-lhe o lugar do meio (Mateus 18,2). E não esqueçamos também que só podemos abeirar-nos de alguém para o advertir, tendo nós o nosso olhar límpido e puro. É fulgurante, a este propósito, a advertência de Jesus num outro importante Discurso de Jesus no Evangelho de Mateus, o Discurso ou Sermão da Montanha: «Como podes dizer ao teu irmão: deixa-me tirar o argueiro do teu olho, se no teu há uma trave? Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho, e depois verás bem para tirar o argueiro do olho do teu irmão» (Mateus 7,4-5). Como é importante que este dizer de Jesus esteja sempre a retinir no nosso coração! E não esqueçamos também que a criança no meio (Mateus 18,2) é Jesus no meio (Mateus 18,20).

 6. Talvez fiquemos satisfeitos e tranquilos, e até, se calhar, cheios de razão, com a declaração final deste itinerário de correcção ou de promoção: «Seja para ti como um pagão ou um publicano!» (Mateus 18,17). Mas é, talvez, exactamente aqui que se esconde a carga mais explosiva do Evangelho e se abre o seu horizonte mais amplo! Ou não é verdade que o próprio Jesus se tornou companheiro de viagem e de mesa de publicanos e de pecadores, Ele que veio curar, não os que têm saúde, mas doentes (Mateus 9,12; cf. Lc 5,31-32).

 7. Uma última e imensa consideração. Não é o texto deste Domingo um exclusivo do Evangelho de Mateus? E não era Mateus um publicano? E não se abeirou dele Jesus? E não virou a vida dele toda do avesso? (Mateus 9,9). Sim, este episódio é exclusivo de Mateus, porque traduz a coisa mais bela e irresistível que aconteceu na sua vida: aquele olhar bom e belo de Jesus que o fez levantar do lodaçal e perceber o poder da lógica do amor e do perdão. E de saber bem que é Jesus que está no meio!

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